Acordar no Meio da Madrugada

Descobri que meu corpo não falha ao acordar de madrugada — ele só lembra de como dormíamos antes da culpa, da luz elétrica e do silêncio forçado.

Isso não é insônia. Isso é Humano.

O que eu descobri sobre o sono bifásico — e como isso mudou minha relação com as madrugadas.

Sempre achei que dormia mal. Dizia que era “fresca” para dormir. Preciso de um quarto escuro, silêncio absoluto e, mesmo tomando café só de manhã, acordava de 3 a 4 vezes por noite — então precisei cortá-lo. Também percebi que preciso me exercitar com frequência para dormir bem. Meu sono sempre veio acompanhado de um conjunto de regras, vigilâncias e manobras para “dar certo”.

No ano passado, comecei a reparar um padrão: após 4 a 6 horas de sono, eu acordava no meio da madrugada e não conseguia voltar a dormir de imediato. Evitava pegar o celular para não me despertar ainda mais — e isso me deixava ansiosa. Pensava: “agora só tenho mais 1 hora de sono”, “agora só 30 minutos…”. E, ironicamente, quando finalmente voltava a dormir, o sono era o mais gostoso da noite.

Um podcast que virou a chave

Foi meu marido quem ouviu um episódio da série BBC Lê sobre uma matéria que falava sobre os dois turnos de sono. Aquilo virou uma chave para nós.

O historiador A. Roger Ekirch, autor do livro At Day’s Close, encontrou centenas de referências em diários, manuais e textos clássicos (como Homero, Virgílio e Chaucer) que atestam a prática do sono segmentado em culturas pré-industriais. Segundo ele, o padrão bifásico era amplamente difundido na Europa medieval, mas também em partes da África, da Ásia e das Américas.

Como era esse sono bifásico?

O sono era dividido em dois blocos, com um período de vigília natural entre eles:

1. Primeiro sono: do início da noite até meia-noite ou pouco depois.

2. Período de vigília: 1 a 2 horas acordado, usado para orações, leitura, conversas, meditação, tarefas ou intimidade.

3. Segundo sono: retomada do descanso até o amanhecer.

Esse despertar noturno não era considerado insônia. Era normal, útil e até desejável.

Dormir em tribo: o sono como vínculo

Intrigada com essa ideia de sono ancestral, fui pesquisar como diferentes culturas dormem fora do modelo ocidental. Descobri que tribos como os Hadza (na Tanzânia), os Tsimané (na Bolívia) e os San (na Namíbia) também não seguem o padrão de 8 horas contínuas.

Essas sociedades vivem sem eletricidade, com rotinas conectadas à natureza, e mostram que o sono:

  • É fragmentado,
  • ocorre em grupo, geralmente em torno no fogo,
  • tem despertares leves durante a noite,
  • cochilos diurnos são comuns e socialmente aceitos.

Dormir, ali, não é feito em silêncio absoluto ou solidão. O ambiente noturno inclui calor, vozes, barulho do fogo e presença constante de outros corpos. E, ainda assim — ou justamente por isso — o descanso acontece.

O alívio de saber que meu corpo não está errado

Essas descobertas me trouxeram paz. Percebi que meu corpo não estava falhando. Ele só funciona diferente da norma moderna — mas igual ao que fomos biologicamente moldados para ser.

Agora deixo meu Kindle na mesa de cabeceira. Quando acordo, leio. Sem culpa, sem cronômetro, sem pressa para voltar a dormir. Aqui em casa, até meu marido ficou mais tranquilo: ele assiste a vídeos no celular durante a vigília da madrugada — e tudo bem.

O despertar no meio da noite não é um defeito. É uma herança. Uma memória do tempo em que nosso sono era cíclico, social e conectado ao mundo real.

E na maternidade?

Na vida com bebês, esse padrão natural retorna com força. Acordamos para amamentar, acolher, respirar. E muitas vezes sentimos culpa — achamos que estamos dormindo “mal”. Mas talvez estejamos apenas dormindo como nossos ancestrais: em ciclos, em escuta, em presença.

Ler, escrever, acolher a si mesma nesse intervalo pode ser um ato de reconexão, não de fracasso. Talvez você esteja cansada não por acordar — mas por lutar contra o que seu corpo pede.

Um convite gentil

Da próxima vez que despertar no meio da madrugada, experimente não se apressar a voltar a dormir.

Respire,
Ore ou Reze.
Medite.
Leia algo.
Escreva.
Lembre-se: isso não é insônia. Isso é humano.

Referências

  • Ekirch, A. Roger. At Day’s Close: Night in Times Past. Norton, 2005.
  • Yetish, Jerome et al. Natural Sleep and Its Seasonal Variations in Three Pre-industrial Societies. Current Biology, 2015.
  • BBC News Brasil. BBC Lê: Por que humanos dormiam em dois turnos antes da luz elétrica — e isso não era insônia.
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Amanda B. Moraes
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