Como a infância moderna se afastou de 2 milhões de anos de vínculo — e o que isso tem a ver com o nosso vazio silencioso
Durante quase toda a história humana, bebês dormiram no corpo dos cuidadores.
Foram carregados no colo, nas costas, nas redes da aldeia, enquanto a vida acontecia.
Não havia quarto de bebê. Nem manual de sono. Nem objetos para ensinar a distância.
Havia presença. Contato. Escuta.
Era isso que Jean Liedloff chamou de estado de continuidade evolutiva.
Até que, em algum ponto, decidimos quebrar essa continuidade.
O berço como ruptura simbólica
Em 1841, com o nascimento do filho da Rainha Vitória, o berço dourado entrou em cena.
Não por segurança. Mas por status.
A infância passou a ser vista como um território a ser civilizado — controlado, higienizado, vigiado.
Cuidar virou conter.
E o corpo da mãe deixou de ser o primeiro ambiente de descanso.
Ao afastar o bebê da pele, algo profundo se perdeu: o ritmo mútuo entre cuidador e criança, tecido por cheiro, calor, som e toque.
O carrinho: modernidade sobre rodas
Na mesma lógica, o carrinho virou sinônimo de praticidade e progresso.
O adulto empurra.
O bebê observa.
Mas o vínculo… se esgarça.
Enquanto o colo regula, o carrinho distancia.
Enquanto o toque responde, a roda afasta.
Não se trata de culpar objetos. Mas de perceber quando eles substituem, sistematicamente, o corpo.
O afastamento não foi decisão científica
Dormir longe, chorar sozinho, ganhar “autonomia” precoce — nada disso veio da biologia.
Veio da moral. Do status. Da publicidade.
A elite adotou.
A classe média quis imitar.
A indústria viu um mercado.
E a ciência, com atraso, tentou justificar.
Nos anos seguintes, mães passaram a ser medidas por sua eficiência, e bebês por sua capacidade de adaptação à solidão.
A maternidade virou vitrine.
E o colo virou fraqueza.
Controle é o novo cuidado
Na era vitoriana, o amor materno passou a ser regulado.
Mães que davam muito colo eram julgadas.
Mães que choravam, diagnosticadas.
O afeto virou coisa a ser dosada, como um medicamento perigoso.
E seguimos assim.
Criando planilhas para o que o corpo sabia de cor.
Chamando de maturidade o que, na verdade, é só silêncio emocional.
A única espécie que antecipa a separação
Entre os mamíferos, o afastamento vem com o tempo — não com a agenda.
Mas o ser humano moderno apressa tudo: marca data para o desmame, treina o sono, interpreta o choro como manipulação.
É o único mamífero que tenta encurtar o vínculo instintivo com metas e tabelas.
Onde tudo começou a doer
Talvez o desconforto que sentimos hoje não seja apenas sobre o mundo moderno.
Talvez seja sobre o que deixamos para trás.
Na tentativa de ensinar o bebê a se afastar, ensinamos também a nós mesmos.
A viver no distanciamento.
A evitar o toque.
A desconfiar do afeto.
E quando sentimos esse vazio estranho no meio da tarde, talvez ele venha de longe:
Do primeiro berço.
Do primeiro carrinho.
Do primeiro colo que não aconteceu.
Não é sobre culpa. É sobre lembrança.
Lembrar que somos animais sociais.
Lembrar que o vínculo é um impulso, não um erro.
Lembrar que ninguém se torna forte por solidão forçada.
Se o instinto ainda nos emociona, talvez ele nunca tenha ido embora.
Só ficou quieto. Esperando ser escutado de novo.
Referências
LIEDLOFF, Jean. The Continuum Concept: In Search of Happiness Lost. Perseus Books, 1975.
ONEILL, Therese. Ungovernable: The Victorian Parent’s Guide to Raising Flawless Children. Little, Brown and Company, 2018.
LEIGHTON, Mary Elizabeth; SURRIDGE, Lisa. Reconceiving Victorian Pregnancy and Childbirth.
MOTHERHOOD IN VICTORIAN ENGLAND. Coletânea de estudos sobre maternidade e moral na Era Vitoriana.
POLLOCK, Linda. Forgotten Children: Parent-Child Relations from 1500 to 1900. Cambridge University Press, 1983.
GRYCTKO, Julie. The Victorian Cult of the Dead Child. (Dissertação acadêmica em PDF).
DUHIGG, Charles. O Poder do Hábito: Por que fazemos o que fazemos na vida e nos negócios. Editora Objetiva, 2012.
BERNAYS, Edward. Propaganda. Horace Liveright, 1928.