O sonho em que éramos vistos

Sonhei que estava em uma rua desconhecida…

Olhei ao redor procurando um nome, uma placa, algum indício. Levei a mão ao bolso, por instinto, em busca do celular. Não estava ali. E o mais curioso: isso não me preocupou. Eu estava calma. Me deixei guiar pelo entorno. Pela primeira vez em muito tempo, não saber onde eu estava tornou a experiência mais rica. Sem interferência, sem expectativa. Reparei nas calçadas, nos muros, nos cheiros, como quem vê o mundo pela primeira vez.

Um cheiro de pão quente veio com o vento e me conduziu até uma padaria na esquina. Havia cinco pessoas ali — três sentadas no balcão, um padeiro atrás do vidro embaçado, e alguém no caixa. Disse “bom dia” e, em resposta, recebi um coral de “bom dia” de volta. Senti o tempo desacelerar. Era como se as pessoas estivessem realmente presentes.

Pensei: acho que estou no interior. Tudo era mais lento, mais próximo, mais gentil. Reparei que ninguém segurava um celular. Ninguém disfarçava o tédio com rolagens. Estavam… ali. A conversa era entre desconhecidos. Política. Educação. FHC no governo. E então percebi: não estou no interior. Estou no passado.

O senhor de camisa branca, Antônio, me perguntou se eu estava perdida. Respondi que sim, e ele sorriu como quem reconhece algo familiar. Disse que eu estava na Rua Miguel de Frias, em Niterói. Uma parte de mim se espantou — conheço essa cidade, minha família é de lá. Mas nada me parecia familiar. Era como se estivesse visitando um lugar que já existiu, mas que deixou de ser. Agradeci e eles me ofereceram um pão. Aceitei. Estava com fome. Mas também aceitei porque havia algo de raro naquele gesto: a confiança. Não parecia haver ameaça. As pessoas estavam abertas. Não precisei provar nada, nem explicar quem era. Só estar ali bastava.

Ao aceitar o pão e me sentar no balcão, algo me veio à cabeça: um rapaz do crossfit. Todos os dias, ele faz o mesmo trajeto que eu, na ida e na volta do box. Caminhamos quase lado a lado, mas nunca nos falamos. Ambos colocamos fones de ouvido assim que saímos — como se fosse parte do uniforme. Um silêncio tecnológico que parece dizer: não me interrompa, já estou ocupado.

Recentemente ouvi Byung-Chul Han dizer que o fone de ouvido é um símbolo da nossa era — o mundo se transforma em trilha sonora privada. Ninguém escuta mais o ambiente. Ninguém ouve o outro. E, ao não ouvir, deixamos também de ver.

No sonho, ali nos anos 90, tudo era mais poroso. As dúvidas viravam conversa. O tempo tinha corpo. As pessoas não pareciam carregadas de desconfiança como hoje. Era possível se aproximar sem parecer invadir o espaço de ninguém. Não havia a sensação de desconforto quando se pedia informação. Havia acolhimento. Espontaneidade. Curiosidade legítima.

Acordei com uma sensação estranha: será que aquilo tudo era mesmo o passado? Ou era só o que a gente foi perdendo devagar, sem perceber? Talvez a nossa humanidade não tenha desaparecido — só foi se silenciando, substituída por comandos de voz, GPS e timelines.

Mas ainda estamos aqui. Somos humanos, gostamos de contato. Talvez em algum lugar entre o pão quente e o bom dia. Entre o trajeto repetido e a escuta despercebida. Estamos aqui.

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Amanda B. Moraes
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