Quando a aparência substitui a existência
Vivemos tempos em que parecer é mais importante do que ser. Essa frase, dita tantas vezes como crítica ao mundo das redes sociais, ganha contornos ainda mais profundos quando revisitamos os diagnósticos de dois pensadores que, separados por décadas, dialogam intimamente: Guy Debord e Byung-Chul Han.
A vida como espetáculo
Em A Sociedade do Espetáculo (1967), Guy Debord afirmava que “tudo o que era diretamente vivido tornou-se uma representação”. Em outras palavras, deixamos de viver as experiências em si para vivê-las através de imagens. Por exemplo: em vez de simplesmente assistir a um pôr do sol, sentimos a necessidade de fotografá-lo, postar e acompanhar as reações. O momento deixa de ser vivido plenamente — ele passa a existir como conteúdo, como espetáculo. E essa lógica se espalha: passamos a nos relacionar com o mundo — e até conosco — não pelo que é, mas por como aquilo parece.
Ele vai além: não apenas consumimos produtos — nós nos tornamos produtos. A lógica do consumo molda identidades. O que você veste, o que você posta, o que você assiste — tudo isso define quem você é socialmente. O “ser” foi substituído pelo “ter”. E o “ter” acabou engolido pelo “parecer”.
Mas a crítica de Debord também aponta para um processo silencioso e profundo: o apagamento das relações humanas por trás da mercadoria. Na modernidade capitalista, não sabemos quem produziu o que consumimos, nem em que condições. O valor do objeto deixa de estar ligado ao trabalho e ao uso — e passa a depender única e exclusivamente da sua aparência social, do seu valor simbólico. O resultado é que as pessoas envolvidas na cadeia produtiva desaparecem junto com a própria ideia de vínculo.
Essa alienação vai além do consumo: ela contamina as relações sociais. O outro deixa de ser alguém com quem trocamos experiências e passa a ser mais um espelho que nos devolve validação. Como Debord já antevia, a mercantilização da vida social transforma os vínculos humanos em relações mediadas por aparências.
O eu como mercadoria
Décadas depois, Byung-Chul Han retoma e aprofunda essa crítica. Para ele, não vivemos mais sob o comando de um poder repressivo, mas de um poder sedutor, que nos convida a nos mostrarmos, nos vendermos, nos performarmos constantemente.
Em plataformas como Instagram e TikTok, não somos apenas usuários: somos o produto. Nos autoexploramos voluntariamente. Criamos versões otimizadas de nós mesmos, cuidadosamente editadas para caber nas expectativas do olhar alheio. Postamos refeições saudáveis mesmo quando estamos exaustos, exibimos felicidade mesmo quando estamos à beira do colapso, tudo para manter a imagem da “melhor versão”.
Hoje, o antigo lema do mundo corporativo “fake it until you make it” parece ter se transformado num mantra ainda mais perverso: fake it until you fake it. A encenação deixou de ser um meio para chegar a algum lugar. Ela virou o próprio fim. O que importa já não é se há verdade por trás da imagem, mas se a imagem convence.
Enquanto Debord denuncia o esvaziamento da realidade em favor da imagem, Han mostra como o eu se esvazia em nome da performance. O sujeito contemporâneo é um projeto infinito de si mesmo, exausto e dependente da validação alheia para existir.
E quanto mais investimos na construção dessa identidade idealizada, mais nos afastamos dos outros. A alteridade, que já estava esmaecida na crítica de Debord, desaparece de vez na sociedade do desempenho descrita por Han. Estamos cercados de telas, conectados o tempo todo, mas vivendo cada vez mais fechados em nossos próprios perfis.
Alienação e autoperda
O mais preocupante não é a alienação em si, mas o fato de que ela não incomoda mais. Sabemos que a foto é encenada, que o discurso é ensaiado, que o afeto é roteirizado e ainda assim curtimos, repostamos, seguimos. A ilusão se tornou confortável. Como dizia Debord, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”.
E essa mediação constante nos afasta da realidade, dos outros e de nós mesmos. Como alerta Han, nos transformamos em sujeitos de desempenho, vigiados por nós mesmos, buscando aprovação constante, até nos esgotarmos.
E agora? Talvez não haja saída imediata. Mas talvez exista uma brecha. Uma fresta de lucidez possível. Nomear a ilusão não a desfaz, mas talvez seja a única forma de não ser totalmente moldado por ela.
Referências
- Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
- Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
- Han, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Petrópolis: Vozes, 2015.
- Han, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.