Quando o cuidado virou serviço

Antes de Freud, do divã e das palavras — já havia regulação, vínculo e cura

Eu sempre gostei de conversar minhas angústias com os amigos mais próximos. Era nesse espaço que eu me sentia acolhida e escutada.
Até que um dia, compartilhei com um amigo algumas dores da minha relação com a minha mãe.

Ele me interrompeu, visivelmente desconfortável:
— “Você faz terapia?”
— “Não faço.”
— “Então isso você fala com um profissional. Não comigo.” E me passou o número do psicólogo dele.

Fiquei em choque. O que aconteceu com a amizade? Sempre me senti cuidada e ouvida por vínculos verdadeiros. Mas ali senti um vazio: parece que agora o cuidado virou serviço.

Essa cena que vivi tem nome.
O sociólogo Frank Furedi chama isso de terceirização do afeto — um fenômeno típico da cultura terapêutica.

Nessa lógica, falar de dor virou algo técnico, privado, agendado.

Amizades, famílias, vizinhanças foram sendo esvaziadas da escuta — e tudo que é emocional foi empurrado para o consultório. A relação ficou monetária…
Mais do que um conselho individual, o que meu amigo fez foi repetir um mandamento silencioso da nossa época: “Não traga seu sofrimento para o convívio. Leve para um especialista.”
E isso me assusta. Porque se a dor só pode ser dita com crachá, então o amor também está sendo privatizado?

Mesmo assim, marquei a tal sessão. Foi uma conversa educada, mas vazia. Superficial. Forçada.
Em alguns momentos, o tempo não passava. Fiquei agoniada.

Mais tarde, falei com minha amiga Natália.
Um áudio. Uma resposta. Um entendimento genuíno.
Ela foi muito mais eficaz para minha dor — e fez isso com afeto, não com técnica.
Fez porque quis. Porque se importa.
Porque amizade ainda é um espaço possível de cuidado.

E foi aí que lembrei do livro da Jean Liedloff, O Conceito de Continuidade.
Lembrei que, por milhões de anos, nossos ancestrais se regulavam sem diagnósticos nem protocolos.
E mesmo assim, cuidavam uns dos outros.
Eles não tinham linguagem clínica, mas tinham linguagem afetiva.
Choravam, sofriam, atravessavam perdas. Mas faziam isso em grupo, com o corpo, na natureza e com rituais. O coletivo dava sentido ao caos. A cura era cotidiana, uma prática cultura, não um serviço.

Hoje, chamamos isso de regulação emocional, de vagotonia, de corregulação. Mas na prática, são os mesmos gestos de sempre:
– Embalar o corpo, por exemplo, ativa o sistema vestibular, reduz a ansiedade.
– Cantar ou emitir sons graves: estimula o nervo vago, organiza o emocional.
– Contato com a natureza: regula a pressão, humor, sono e ritmo interno.

O que perdemos pelo caminho?

Começamos a isolar o sofrimento.
A rotulá-lo.
A empacotá-lo em diagnósticos.
E, ao mesmo tempo, desvalorizamos os afetos gratuitos, os vínculos espontâneos, as sabedorias não profissionais.
A psicoterapia virou a única via legítima de escuta.
E a amizade virou um lugar onde só se compartilha conquistas, não angústias.
Mas será que precisa ser assim?

Psicoterapia é potente – mas não é tudo

É maravilhoso poder conversar com alguém capacitado.
Mas não podemos esquecer: não foi a psicoterapia que inventou o cuidado emocional.
Ela organizou, teorizou, deu contorno. Mas o cuidado já existia — e ainda existe — fora do consultório.
Talvez o que a gente esteja precisando não é de mais técnica, de mais remédios.
Mas de mais vínculo.
Mais roda de conversa.
Mais pausa.
Mais presença não remunerada.

Referências:
  • Liedloff, Jean. O Conceito de Continuidade. Pensamento, 2007.
  • Porges, Stephen. A Teoria Polivagal. W.W. Norton, 2011.
  • Levine, Peter. O Despertar do Tigre: Curando o Trauma. Summus, 1997.
  • Coan, Richard et al. Estudos sobre corregulação e vínculo afetivo na psicologia evolutiva e neurociência.
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Amanda B. Moraes
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